Crónica de fim-de-semana: nós somos a mudança que procuramos
- pedroalbertoescada
- 2 de nov. de 2024
- 4 min de leitura

31 de dezembro de 2019: a OMS alerta sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Identifica-se uma nova estirpe de coronavírus que não havia sido identificada antes em seres humanos.
11 de Fevereiro de 2020: O vírus recebe o nome de SARS-CoV-2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2).
30 de janeiro de 2020: a OMS declara o surto do novo coronavírus como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, para reforçar a coordenação, a cooperação e a solidariedade global para interromper a propagação do vírus.

29 de fevereiro de 2020: o escritor Chileno Luís Sepúlveda é internado no Hospital central das Astúrias, em Oviedo, com o diagnóstico de COVID-19, depois de ter participado em Portugal no festival literário Correntes D’ Escritas, na Póvoa do Varzim.
9 de março de 2020: o Dr. Marques dos Santos, na altura Vice-presidente da SPORL-CCP, envia um email aos restantes elementos da Direção da sociedade, informando que a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia teria enviado nesse próprio dia uma recomendação dirigida aos profissionais de saúde da área da Oftalmologia, a reconhecer que a conjuntiva é uma porta de transmissão da doença, e a sugerir medidas para a proteção dos profissionais de saúde, mais exigentes do que as medidas de carácter geral divulgadas pela DGS.
10 de março de 2020: Os elementos da Direção da SPORL-CCP iniciam uma pesquisa de informação científica sobre a COVID-19 e a ORL.
11 de março de 2020: a OMS declara a COVID-19 como uma pandemia.
11 de março de 2020: A pandemia de COVID-19 é declarada oficialmente em Portugal.
14 de março de 2020: O SIM (Sindicato independente dos Médicos) noticia que 1 em cada 5 doentes infetados com o SARS-CoV-2 são médicos.
15 de março de 2020: Após reunião da Direção, o Professor Jorge Spratley, à data presidente da SPORL-CCP, determina que a SPORL-CCP deve preparar rapidamente uma série de recomendações, destinadas a contribuir para contenção da infeção por SARS-CoV-2 e a cuidar da proteção dos otorrinolaringologistas portugueses e das suas famílias.
16 de março de 2020: Eu (Pedro Escada) disponibilizo-me para elaborar o rascunho inicial das recomendações, identificando como as suas linhas orientadoras as três seguintes: 1. A maior parte dos doentes infetados com COVID-19 têm sintomas ligeiros que não cumprem os sintomas do critério do caso suspeito definido pela DGS; 2. Os doentes infetados com sintomas ligeiros têm sintomas que os levam muitas vezes a serem observados nas urgências ou consultas de ORL; e 3. Todos os médicos de ORL que observem doentes com sintomas respiratórios agudos durante o período pandémico devem adotar o mesmo nível de proteção individual que é preconizado pela DGS para os casos suspeitos ou os doentes infetados. A Dra. Sara Viana Batista e o Dr. João Elói colaboram comigo na coleção de informações de várias fontes e na finalização do rascunho inicial.
18 de março de 2020: O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa declara o Estado de Emergência em Portugal, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
18 a 20 de março de 2020: A Direção da SPORL-CCP discute as recomendações até serem finalmente aprovadas e assinadas pelo Presidente da Sociedade no dia 20 de março. Apenas 9 dias depois de declarada a pandemia em Portugal e 2 dias depois de declarado o estado de Emergência! As recomendações, exaustivas e completas, são publicadas no site da SPORL-CCP no dia 23 de março.
Nas semanas seguintes a SPORL alabora e publica recomendações adicionais relativas a aspetos como a traqueotomia e a realização de procedimentos endoscópicos da área ORL.
16 de abril de 2020: Morre Luís Sepúlveda, em Oviedo, onde estava internado, em consequência de complicações do COVID-19.
5 de maio de 2023: A OMS declara o fim da pandemia por SARS-CoV-2. Não morreu em Portugal nenhum médico otorrinolaringologista durante a pandemia por SARS-CoV-2.
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A elaboração destas recomendações foi um dos momentos de maior sensação de dever cumprido que tive nos anos que tenho dedicado à SPORL, pois conseguimos ajudar os sócios, colmatando as consequências dramáticas na sua vida e sobrevivência profissional decorrentes da pandemia, numa fase em que se sabia muito pouco sobre esta doença e as suas formas de transmissão.
A reação dos sócios que se seguiu à divulgação das recomendações encheu-nos a todos de orgulho: fomos contactados por colegas de grandes e pequenos hospitais, instituições públicas e sobretudo privadas, pequenas clínicas e consultórios individuais, a agradecer e a reconhecer que o documento os tinha ajudado rápida e efetivamente a reorganizar a sua vida e manter a esperança.
O episódio foi para mim uma lição: ensinou-me que uma sociedade científica tem que estar sempre pronta a quebrar a rotina, a não olhar para o lado nem olhar só para si própria: deve olhar, em primeiro lugar, e sempre, para os seus sócios. Em consciência, penso que é assim que temos feito sempre, nos últimos anos.
Em 2022, no final do mandato da Direção da SPORL-CCP que viveu este episódio (e viveu a pandemia), o Presidente Jorge Spratley escreveu o seguinte: “Como presidente da Direção, confesso que foi uma honra e um prazer diário trabalhar com uma equipa que se revelou verdadeiramente única na sua coesão, capacidade de trabalho e amizade autêntica, valores importantíssimos nos difíceis desafios que tivemos de ultrapassar durante a pandemia Covid-19”.
Nunca lhe agradeci estas palavras, pelo que o estou a fazer agora, recordando as palavras de Barak Obama, que em 2008 disse: “nós somos aquilo que procuramos”, querendo dizer que todos temos a responsabilidade pessoal e coletiva de fazer a diferença pelas nossas ações, decisões e envolvimento cívico. Nós estivemos verdadeiramente à altura de ajudar todos os nossos sócios num dos momentos mais difíceis das suas vidas.

PS: pode parecer estranho para alguns leitores a introdução, nesta história em forma de cronograma narrativo, de uma personagem que não parece pertencer a esta cronologia: Luís Sepúlveda, escritor Chileno. Terá importância? Para mim tem. Luís Sepúlveda escreve muito bem (digo escreve porque para mim ele não morreu). Ele ajuda muitos a viver melhor. Recomendo todos os seus livros, mas em particular dois: “ A história de uma baleia branca”, reflexão sobre a responsabilidade dos seres humanos no respeito pela natureza, e “A história de um cão chamado Leal”, um livro sobre a amizade e a solidariedade. Leiam estes livros. Primeiro, por prazer. Segundo, porque correm um grande risco de ficar melhores.







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